escrevo com o único intuito de não deixar ser consumido pelo não-dito
às vezes passo um período sem conseguir escrever uma única frase. acho que acontece com todos que escrevem, mas é uma sensação paralisante. sinto que tenho muito o que dizer, mesmo que ninguém leia, porém não consigo traduzir em palavras. permaneço deitado, imóvel, pensando em variadas formas de externar aquilo que quero desabafar. porque é disso que se trata: um desabafo. ninguém escreve por puro lazer, mas sim pela necessidade. nunca li um texto bom que tenha sido gerado em um estado de puro prazer. sim, é possível sentir algum prazer escrevendo, não nego. mas a escrita nascer do prazer? que acontece, é fato. a amazon vende centenas de livros desse tipo. mas… podemos dizer que essa escrita traz alguma coisa aproveitável? duvido muito.
ser observador do mundo é ver coisas que mais ninguém se dá o trabalho de enxergar. a mesma coisa vale para quem escreve e leva a escrita como uma ferramenta muito séria, um meio do qual é possível tocar alguém de alguma maneira. porque se trata de comunicação de alma, você fala para quem está sofrendo ou se sentindo inadequado ou perdido. claro, estou falando sobre como escrevo e o que me leva a escrever. e os escritores que me formaram também sentiam essa necessidade, a escrita vindo do grito entalado, da dor sufocada, do trauma não curado, do peso da existência. e é isso o que torna a escrita tão linda, a literatura como um meio desnecessário, no sentido de utilidade mercantil, mas transformadora, em um sentido mais existencial e até mesmo espiritual.
observo como as pessoas não conseguem mais captar nuances, lidar com dualidades, a complexidade do ser. tudo precisa ser preto no branco. nas últimas décadas perdemos um tanto ao exigirmos que tudo seja puro, limpo, sem controvérsia alguma. afinal, se escrevo sobre x assunto, deve ser pelo motivo de que defendo x. não posso abordar vários assuntos, tomando diversas opiniões, sem ser creditados por elas — afinal, é o autor que pensa e escreve, logo, concorda com isso ou aquilo. mas que coisa besta e infantil, não? posso ser uma pessoa boa ou má e escrever coisas boas ou más, nem tão boas ou más, ou completamente más e nunca boas. nunca se sabe.
ao abrir essa torneira, ela começa a jorrar sem parar. recuar significa fechá-la e perder a torrente de palavras que virão a ser um texto, publicado ou não. comecei vários romances na mesma intensidade com que abandonei-os. penso muito se esse problema afeta só a mim, o de começar e nunca terminar. eis o meu tormento, um deles.
deixando ser levado pelas distrações efêmeras, pelas leituras hypadas e curtas, ler livros com menos de 300 páginas e apenas livrinhos bobos… temo muito pela geração futura de leitores e escritores, porém não tenho relevância alguma para discutir o assunto. apenas acho triste uma supervalorização de uma literatura criada mais para engajamento do que para fazer pensar, incomodar, tocar nas feridas… óbvio que nem tudo deve ser levado tão a sério, mas até em leituras mais leves ou divertidas deve ter alguma coisinha, por mínima que seja, que faça o leitor coçar a cabeça e pensar um pouquinho, sabe?
escrevo com o único intuito de não deixar ser consumido pelo não-dito. tenho muito o que falar-escrever, mas isso leva tempo.

